Quem deve contar a estória?


Quem deve contar a história

Logo após testemunhar um dia de batalha da Guerra Civil Americana, o poeta e jornalista Walt Whitman escreveu: “Quem deve contar a estória? — quero dizer, nós falamos de estórias desta guerra — agora há histórias desta guerra. E deverá haver livros em detalhes, centenas deles. Nos livros impressos, histórias completas desta guerra virão. Ó céus! Qual desses livros poderá dar a História desta guerra?”

Nesse texto o poeta, com habilidade, fala de uma guerra senil da história americana. Uma guerra interna, entre duas visões de mundo, da qual nunca poderia haver vencedores.

Trata-se de uma guerra eterna, ainda travada e eternizada, dentro da cultura americana, na figura dos partidos, politicamente falando. Mas não apenas: também na cultura geográfica do país, com a sua região sul que é tão diferente do norte, em tantos aspectos, que passam pela cultura, idiomas, sotaques, visão de mundo e visão política.

O que fica evidente, em comparação aos Estados Unidos, é que o Brasil teve, desde o seu nascimento, o mesmo propósito de ser um ponto de mutação no mundo: lugares onde as mais diversas etnias podem ter o sonho de sucesso, seja na busca da felicidade, no caso dos americanos, seja na peregrinação para encontrar a brasilidade, no caso de nós brasileiros. Sendo ambos os países terras de imigrantes, é interessante encontrar o que temos de igual e o que temos de diferente.

Infelizmente, no que tange ao que temos de diferente, fica claro que nos falta a aplicação anglo-saxônica, a eterna busca pelo conhecimento que foi eternizada por Aristóteles. No Brasil, infelizmente, há o que eu chamaria de glamourização da ignorância, o que é um equívoco. O oposto ocorre nos Estados Unidos, o que o tornou a potência econômica que ainda é e será por muitos anos: aqui o conhecimento é valorizado e favorecido, além de prestigiado. Não se trata de quem tem mais títulos ou do que cada um faz, mas sim da habilidade de cada um de buscar transcender a própria vida, de realizar um sonho qualquer, ainda que seja só seu, ou ainda, de viver a sua história, não importando as adversidades ou as calamidades.

No que temos de igual está a divisão eterna entre duas visões de mundo absolutamente complementares que, diante de uma racionalidade maior, nem deveriam existir. Mas existem. Trata-se da visão entre o coletivismo e o individualismo. Essa linha tênue que, como eu disse, nem deveria ser traçada, muitas vezes, na história dos dois países, foi assim criada diante de uma visão absolutamente equivocada de que um ser humano pode acreditar ser superior a outro apenas por atributos intelectuais.

Essa visão de mundo, de que pessoas podem ser escravizadas, era defendida, na época, pelo então “Partido Democrata”, que era, naquela época, formado pelos sulistas. Estes acreditavam que a escravidão fazia sentido. Quando Abraham Lincoln, um presidente republicano, liberal, que sempre defendeu as liberdades individuais, aboliu a escravidão, um ano depois começou a chamada “secessão”, em que diversos Estados promoveram a divisão do país. Tal divisão levou à Guerra Civil Americana, uma guerra interna que durou 4 anos e levou 600 mil pessoas à morte. Com o fim da Guerra em que o Sul perdeu, houve a reunificação do país e uma eterna revisão de sua política que levou à escravização dos negros que, aos poucos, foram reconhecidos como membros dessa sociedade.

É óbvio que a grande questão desta guerra foi a escravidão, mas a guerra civil americana não foi uma guerra entre brancos e negros, mas sim entre brancos e brancos. A cor da pele pouco importava, o que importava era a cor do pensamento: os que pensam que podem escravizar e deixar uma população inteira na ignorância e os que pensam que todos são livres e que cada um precisa respeitar a liberdade alheia.

Posto desta maneira, é possível perceber que essa divisão ainda existe hoje, tanto nos Estados Unidos, quanto no Brasil.

No Brasil não houve nunca uma guerra civil que conseguisse determinar com clareza quem seria o seu vencedor. Nos EUA ficou claro que o individualismo libertário se sobrepôs ao coletivismo escravista e venceu a guerra. No Brasil, a Lei Áurea não gerou nenhum gatilho para uma guerra. O que ele gerou foi uma pura e simples divisão entre os exploradores e os libertadores. Os libertadores, por fim, levaram o país à República, enquanto os exploradores seguiram explorando as liberdades alheias, a ignorância, o cabresto, a dominação financeira, a corrupção e o conhecimento.

Trataram de tornar inacessível a muitos miseráveis a informação. Não se esforçam em trazer educação para todos e nunca irão se esforçar. Em vez disso, políticos discursam sobre quanto dinheiro a mais derramam na educação, sem nunca contabilizar, de fato, quantas pessoas estão deixando de ser analfabetas funcionais, quantas pessoas são capazes de compreender o nosso sistema tributário, nossas leis cartoriais, nossas estruturas arcaicas, nossas leis que não pegam, nossa justiça que tarda e falha muito, e até mesmo as nossas cadeias que, em vez de punir, servem de escola do crime.

Se por um lado a liberdade parece ser sempre invencível, por outro, a dominação, a exploração, o cabresto, a lágrima, a dor e a tortura sempre estarão presentes em nossa cultura. Ela está por toda parte, seja no coração covarde ou na mente inábil. Hoje ela se traduz na nossa esfera política com aqueles que a dominam e que controlam o nosso nível de ignorância. Escondem, pelo tempo que acham melhor, informações relevantes sobre a nossa história, alteram preços, manipulam empresas, compram executivos. Inadvertidamente, estamos todos sendo enganados. Não o tempo todo, mas por algum tempo. Pelo tempo suficiente, apenas para que a nossa ignorância temporária possa servir aos sabichões da república.

Sabemos que a mentira não tem o atributo da permanência. Ela pode permanecer por algum tempo, mas nem sempre é possível mantê-la. Conforme as mentiras são desveladas na nossa cara, reavaliamos as nossas condições e as nossas decisões. No Brasil isso vale para os nossos governos. No caso da água, esconder por tanto tempo que havia um problema só levou os nossos reservatórios a ficarem secos mais rápidos. A mentira sobre o petróleo só serviu para segurar um pouco os índices de inflação para tentar mantê-los dentro da meta. Assim vamos sendo explorados. Não de forma muito diferente da época da escravidão.

Naquela época, vale lembrar, os escravos eram imunes a muitas crises econômicas simplesmente porque não lhes era permitido participar da economia. Essa ilusão fazia com que muitos deles não conhecessem e nem tivessem condições de criar negócios, competir com os seus senhores ou até mesmo impor alguma nova realidade. Mantidos na escuridão do desconhecimento até do que faziam, incapazes de ler um livro ou manual, não seriam capazes de se indispor contra os senhores. Apenas os escravos mais torturados é que se fortaleciam, já que a tortura é estímulo para a libertação de quem tem um grande coração. Nem todas as almas são capazes de buscar a liberdade.

Muitos hoje ainda vivem escravizados sem perceber que não se trata apenas do trabalho escravo. Ele é também o trabalho mal remunerado, a ignorância mantida com rigor. A nossa escravidão se traduz na ignorância por consenso, ou até mesmo na mercantilização da ignorância, por meio de músicas ruins, de discursos vazios, de propagandas políticas mentirosas ou até mesmo no “jeitinho brasileiro”, que tem nos tornado incapazes de sermos livres de nossas próprias mazelas. Toda vez que uma lei é criada, sempre há, em nosso país, algum político buscando alguma vírgula, alguma crase, alguma alínea ou travessão que a desvirtue. Ou simplesmente há os sociopatas que as desobedecem em nome da dominação alheia, do controle da mente do próximo. Não há aqui o amor ao próximo que se alardeia. Ao contrário do que teria dito o “profeta Gentileza”, a realidade é que a cordialidade ignorante gera mais ignorância.

Onde não havia essa cordialidade, houve uma guerra civil. Uma guerra civil silenciosa que hoje, em nosso país, se traduz nos mais de 50 mil mortos por ano nos últimos anos. Aliás, nos últimos 4 anos, já morreram muito mais de 600 mil brasileiros devido à nossa própria guerra civil. Ela não está sendo travada mais nos lindos campos e florestas da Virginia. Ela é travada no nosso cotidiano, sempre entre as mentes que buscam a dominação por meio do assalto, sequestro, assassinato, corrupção, descaso e sociopatia.

E uma guerra civil tem muitas estórias. O que o Walt Whitman questionou, ou ainda, o que ele descobriu, é que essas estórias todas formam muitas histórias. Mas muitas histórias diferentes não ficam para a História. A História, com H maiúsculo, acaba por ser contada pelo vencedor. Infelizmente os nossos vencedores já se habituaram a contar estórias como se fosse História.

Já os que buscam a História de verdade, esses terão de construí-la aos poucos. Somente quando a liberdade vencer a batalha do nosso país, é que seremos capazes de contar uma História que não seja estória, que não seja conto de fadas.

Nesse dia deixaremos de sangrar.

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